
Rezava assim, no Ocasião. Depressa a soube lá para o sotão do país. Pôr-me a caminho até Valença, para ver o chaço?
Que fosse. Que não ia arrepender-me, asssegurava-me do outro lado do telefone a voz timbrada de um nortenho, que falava à padre e tinha um nome pitoresco, a dar para o gerúndio.
- Tá boa de mecânica, senhor Ermesindo?
- Tá xim, xenhor. Tem um motor ‘xexional!
- E de chapa?
- Xó bisto! Tem direxão axixtida, que é coija rara nas biaturas da idade dela.
Pois lá fui eu, num sábado frio, acompanhado do meu pai, que percebia da coisa, em direcção ao Norte.
Já tínhamos visto uma, uns dias antes, em Alcochete. Babada de óleo e com visíveis problemas de chapa. Não convencera.

A compra de uma segunda carrinha evitaria o estorvo, servindo aos dois o ano inteiro.
Tomámos Valença perto do almoço e fomos guiados pelo amigável Ermesindo em direcção a um belo terrunho no meio dos montes, com casinhas de granito, cercadas de paz e mantos verdes.
Estacionámos.
Deixámos passar um rebanho de ovelhas e cruzámos um velho portão, depois de pisarmos caganitas. À nossa espera, um velho solar do tempo dos reis, com ar de sofrer um desabamento a todo o instante.

- Não – despachou, redondo, depois de sorrir timidamente - Comprei isto há uns anitos, quando ainda estaba em Franxa. Mas quando boltei fui morar para Canabeses. É uma pena isto estar axim. Bamos a ber se os espanhóis a compram. Andam por aí a comprar tudo!
E enquanto se perdia em explicações, retirou de um grande portão de madeira uma grossa tranca. Os ferros chiaram e este abriu-se de par em par.
- Cá está ela! Já não trabalha há uns tempitos. Bamos ber xe pega!
Pneus carecas, chapa vetusta e habitáculo tipo a casa duma doninha. Maravilhosa a primeira impressão!
Mas eis que pegou, embora o escape se comportasse como um assador de castanhas!
Foi nesse instante que, à rectaguarda, descobri o sobrado do casarão acocorado sobre a Mercedes, como descansasse em cima dela o peso dos anos.

Feita a revista, abordámos o preço.
Que não valia o anunciado.
Que não o quê? Saltou a mulher do bom Ermesindo, de mãos nos bolsos, parecendo pronta a entrar num duelo. Cuspia lava pelos olhos e era larga como um tronco.
Estava o caldo entornado.
E eu já o cheirara, quando, ao chegar, a dita senhora me estendera a mão com ar de xerife do Alabama. E atalhava, metediça, na conversa que fomos mantendo sobre a carrinha. E comia pastilha, que não era coisa que se enquadrasse com o ar singelo do Ermesindo.
- Desculpe lá, é consigo o negócio ou com o seu marido? – Largou o meu pai, já farto da cobra.
- É comigo – disse ele.
- É com os dois, disse ela.

Lá firmámos, a contrafé da dita senhora, o preço pedido, mas com direito a pneus mudados no eixo da frente, a cedência dele. Regressaríamos na semana seguinte para vir buscá-la e saldar as contas, depois de pagarmos com dinheiro à vista o devido sinal, que a pingonheira não queria cheques.
Lá regressámos, oito dias depois. A conta paga e a chave na mão, contra a vontade da “Ermesinda”, que por lá deixámos a ruminar os dois pneumáticos recauchutados, que valiam cem euros! Se fosse por ela, ai não levaríamos a carrinha, não senhora!
Bem nos fadou.
Deixámos Valença a meio da tarde.
Ao redor do Porto, apoderou-se da Mercedes uma estranhíssima tremideira. Rolámos assim uns quinhentos metros.
PUM!
Direito aos rails de protecção, que só não beijámos por dois centímetros.
- Rogou-nos uma praga a P de merda – cuspiu o meu pai enquanto contava os pedaços de cautchum de cem euros, acabadinhos de morrer na estrada.
Porcas das rodas calcinadas. Pneu impossível de substituir.

Uma semana depois, lá fui eu de comboio à cidade dos estudantes buscar a bicha. Levei na mochila a fatiota de neoprene e no regresso passei pelo Baleal. Chovia a potes. No bar da praia, já tinha à espera a longboard de cem quilos do nosso amigo André e a onda do Cantinho, a que não me neguei, apesar do frio dezembrino. Logo ali, pude comprovar o conforto da caixa da carrinha, que mesmo despojada, suja e com teias de aranha, me protegeu do frio quando saí da água e precisei de vestir-me.
Na semana seguinte, dei-lhe uma limpeza geral e enfiei lá dentro um colchão insuflável e um saco-cama.
E nesse fim-de-ano, lá fui eu para o Baleal no hotel ambulante. Apesar de não estar ainda transformada, já era uma óptima sensação dormir lá dentro junto ao mar e acordar de manhã ao pé das ondas, com a paisagem que me apetecesse.
Assim andei até Junho de 2007, altura em que foi possível começar a transformá-la. Como podem ver pelas imagens, deu bastante

Tudo somado e baralhado, apetece dizer: Valença valeu a pena.
4 comentários:
Grande Luís, deliciei-me a ler a história do "Hotel Califórnia".
Tá excelente.
Boa!
Grande Abraço
O ke um gajo não faz pelo surf!Ganda espirito!
Eu conheço bem este "Marmelo", já foi ceramista, cronista agora é também "baladêro", enfim um gajo porrêro mas um grande artista....
Boas!
Curti a tua história... a maneira como escreves. Se calhar já por lá andaste mas aqui fica na mesma: www.tribodasestrelas.org. Um forum dedicado a carrinhas Mercedes como a tua. Aparece!
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