sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

natalidades - greg noll e o super-homem

Como era costume, Jonas saiu para ver um filme no dia de Natal. Com os bilhetes esgotados, a única coisa que lhe ocorreu foi palmilhar a Rua Augusta e trautear o “Yesterday”, que o primo Noé cantarolava sempre que a vida lhe corria mal. Por falar nele, menu, contactos, Noé, ligar!
- Alô, Noé, Bom Natal!
- Bom Natal, Jonas! Pensei que estarias no cinema!..
- Também eu! Sabes uma coisa? Como os bilhetes estavam esgotados, pus-me a andar pela rua fora e a rever mentalmente o Super-Homem...
- ...Nietzsche? O grande Tolstoi chamava-lhe estúpido e anormal. E muito bem! Um homem que acredita na teoria do Super-Homem só pode ser estúpido e anormal! Além disso, naquela altura, ainda não tinha nascido o Greg Noll! Caso contrário, a história seria outra!
- Esquece lá o Nietzsche, estou a falar do "Super-Homem", o filme, que vimos juntos no Éden em 1978!
- Seja lá onde for, na filosofia ou no cinema, Super-Homem é o Noll!
- Estás a comparar o Greg Noll ao Clark Kent?
- Não. Estou a comparar o Greg Noll ao Super-Homem! O que é mais difícil? Escapar a uma tonelada de água por cima da cabeça ou voar com a Lois Lane nos braços?
- ....!!!
- Por exemplo: se o Pai Natal desse uma prenda ao Super-Homem, que prenda seria, Jonas?
- Talvez uma capa nova, que a outra já deve estar velha; ou então um bife Bourguignon, de que ele tanto gostava...
- Isso pressupõe que ele ainda se mantém jovem, com dentes para a capa nova e o Bourguignon!
- Claro que sim! Velhos são o Batman e o Flash Gordon! Ele nasceu a 29 de Fevereiro. Por isso, envelhece quatro vezes menos!...
- Pois é, Jonas! Essa é uma grande vantagem que ele tem sobre o Flash Gordon e o Batman. Mas também sobre o Greg Noll, que soma hoje 72 anos e que, se acreditasse no Pai Natal, pedia-lhe já para ter nascido no dia 29 de Fevereiro, com efeitos retroactivos, descontando-lhe os anos que não fez. Assim, teria 18 e estaria pronto para dar na pá ao Kelly Slater. Se o Pai Natal visse o que ele fez em tempos às maiores ondas do Planeta, tratava já de lhe chamar Super-Homem e de lhe descontar imediatamente a placa dentária e as artroses e a porcaria da canção dos Beatles!...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

a onda eterna

- Que lês tu, ó vaca que lê?
- “O homem que não tinha mais nada para fazer a não ser uma onda”.
- Interessante...
- ... Familiar, diria eu! Fazendo sempre a sua onda, e nada mais fazendo, que distingue este homem duma vaca num prado verde?
- Se, em vez de poeta, eu fosse filósofo, responder-te-ia que precisam ambos dos seus elementos para crescerem. A diferença está no efeito, que na vaca é físico somente.
- Secundarizas, ó poeta, a minha dimensão terrena? Põe os olhos na Índia!
- Escuta, ó vaca: a vida é como a digestão! – absolutamente transitória! Quando eu era pequeno, costumava visitar uma tia do campo que tinha uma vaca. Impressionava-me muito o jeito indolente daquele animal volumoso; o seu inefável vagar, expelindo excrementos e mastigando sempre; mastigando sempre e expelindo excrementos, num acto mecanicamente idêntico ao de pestanejar. Foi nesse contexto que eu percebi que a vaca era a vida. E a vida uma vaca, absolutamente vaca e transitória.
- Não me compares, ó poeta, à vaca da tua tia! Eu sou artística! E, nessa medida, sou eterna!
- Concordo que essa observação inteligente e particularista não é para uma vaca qualquer, ó vaca!
- Que sabes tu de vacas, ó poeta? Que não têm mais nada para fazer a não ser abanarem o rabo para enxotar as moscas? E fornecerem os ossos para fabricar sabão? E os pelos das orelhas para fazer pincéis? E serem gordas no tempo da abundância? E assumirem a sina da sua pobre mão, que é ser comida com grão?
- Acalma-te, ó vaca! Pareces um touro enraivecido!
- Ai, se eu pudesse sair daqui, ó poeta, ai eu marrava-te!
- Não sejas vaca, ó vaca! Conta-me lá essa do homem que não tinha mais nada para fazer a não ser uma onda.
- Conheço apenas o meio da história, em que o homem que não tinha mais nada para fazer a não ser uma onda se deixa envolver, como diz aqui, “uterinamente” nela.
- Que poético, ó vaca! Sendo que nunca poderás mudar a página, esse homem que não tinha mais nada para fazer a não ser uma onda ficará para sempre dentro dela. Eis o que transcende a dimensão física e transitória do teu prado verde...
- MUUUUUU!...

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

a criação do mundo

(Tradução a partir do poema original de Luigi Boffa-Molinar)
Fotos: Mary Anne Faysk















Eu sou a
onda. Cíclica. Como um
escopro umbilical. Que arremete e
fende. Tu és o

centro.

E o mundo cabe na matriz do
centro. E o fluxo cabe no re
fluxo. E o ensejo no

ponto.

Eu sou a
onda. O embate. Grávido. Ao sabor da
maré.






















sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

fado clandestino

Nem os Tokio Hotel
Os cantores penicheiros Ivo & David preparam-se para apresentar brevemente ao público o seu mais recente trabalho: “Ondas & Marés”.
O espectáculo está marcado para o dia de Natal, na marina de Peniche, onde actuarão os Deolinda, cabendo ao duo do Oeste as honras da primeira parte.
Uma história que bem podia, afinal, ser escrita ao contrário, pois têm sido, esmagadoramente, os fãs do duo quem, desde cedo, desespera por sentir nas mãos os tão desejados ingressos, à venda já a partir de amanhã na secretaria da Câmara Municipal.
Nos últimos dias, a presença permanente de milhares de jovens à entrada do Município gerou mesmo uma onda de solidariedade por parte da população penichense, que não tem regateado esforços para assegurar com víveres e outros bens de primeira necessidade a sobrevivência dos fervorosos seguidores de Ivo & David, a pernoitar há dias em condições deficitárias para poderem ouvir no próximo dia 25 o cobiçado dueto.
Tendas, cobertores, caixas de cartão: tudo serve para descansar o corpo da maratona diária, igualmente compensada, desde a primeira hora, pelos supermercados locais, incansáveis no fornecimento de relaxantes “Durex” e “Casal da Eira”.
Joana, 16 anos, vinda da Nazaré, elogia a organização: «Peniche está de parabéns! Ter a oportunidade de ver Ivo & David depois de curtir oito dias à porta da Câmara, é o máximo! Nem os Tokio Hotel conseguiram gerar um acampamento tão grande e duradoro à porta do Pavilhão Atlântico!».

Alabá Nutê e “A Invenção do Amor”
E não se pense que a boa vontade de Joana é fruto da idade, pois um pouco adiante fomos encontrar a dona Palmira, de 66 anos, avó do Danilo, de 18, e que veio com o neto directamente de Freixo de Espada à Cinta para escutar a banda mais desejada do Oeste: «Quais Beach Boys, quais quê?! Ivo & David é que é!» gritou-nos na cara a dona Palmira, enquanto franzia o nariz e sorria desabrida com os seus quatro dentes. «Olhe!», continuou ela, «o do barrete é muito parecido com o Ricardo Xibanga, o toureiro, lembra-se? É só por dizer que este é branco, enquanto o outro era preto!...».
Fizemos um silêncio pesado, que Palmira tratou imediatamente de aligeirar com uma expressão de cupido. «O dos caracóis», retomou ela, «faz-me lembrar um amante que tive em Marrocos, quando fui para lá fazer surf e curtir uns fumos, em 1964. Chamava-se Alabá Nutê, que em português quer dizer Cavaleiro do Tempo. Passei com ele dias a fio, dentro duma Volkswagen pão-de-forma, à procura da onda perfeita, que nunca encontrei, e só alguns anos mais tarde, muito depois de ter regressado, é que eu percebi que a onda perfeita era afinal aquele rapaz de pele acobreada, que me cantava, todos os dias, com a sua guitarra clássica e voz de mel, uma canção esquisita, num português muito mal arranhado, que só depois do 25 de Abril é que eu descobri que era um fado clandestino, inspirado no poema do Daniel Filipe “A Invenção do Amor”, mas que não tem nada a ver com o “Clandestino” cantado por uma bandazita que anda para aí agora e que se chama Deolinda, está a perceber?».
Imagem de: Aaron Bihari

domingo, 5 de dezembro de 2010

uma questão de pica

- Ó Ixca, vamos fajê uma jondas?
- Ó Ruca, vai gojá o caraxas!
- Num tou a gojá, Ixca! Vamu jali ó Lerruá Merrlan comprá umas madeiritas e uns preguitos e fajemos umas!
- Ó Ruca, vai majé palitá uj dentes!
- Não fales axim comigo, Ixca! Eu xou o Prínxipe de Jerujalém! E o Prínxipe de Jerujalém não palita uj dentes!
- Prínxipe de quê?! Ó Ruca, vai majé bada meda!
- Groxeiro! És um groxeiro ignorante, Ixca! Não xabes xequer onde é Jerujalém, nem o que xão números primos, nem uj indicativos telefónicos da rede fixa, nem os títulos dos filmes todos do Jeimeje Bond, nem os nomes dos xete anões, nem os dos xantos padroeiros, nem o que é o depójito legal, nem o que xignificam os xímbolos da lavagem de roupa: branquear com cloro ou xem cloro? Paxar a ferro morno ou a ferro quente? Xecar com xentrifugaxão baixa ou xentrifugaxão alta? Lavar a xeco com qualquer xolvente ou triclorotileno? És um Xaloio ignorante! Não xabes xequer quem foi Luís XV, nem o que é o estilo Rococó!
- Rococó é o que tu tens nuj dentes, Ruca!
- Não digas ixo, Ixca, qu’eu fico xenxibilijado! Tenho uns dentes axim tão ornamentadinhos, ‘migo?
- O que é que tu estás praí a dijê, Ruca? Não ias ao Lerruá Merrlan, Ruca? Não ias lá comprá umas madeiritas e uns preguitos para fajermos uma jonditas, Ruca?
- Poi jia, Ixca!
- Atão vai, Ruca! E, já agora, aproveita e traz também uma lata de “Pica” para distribuirmos pelo pexoal do blogue, a ver xisto anima!