terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

pai, também quero fazer surf!

Esta é a frase que muitos surfistas esperam ver brotar um dia na boca dos filhos. Mas há quem dispense essa expressão de vontade e os meta à água quase sem dentes e a cheirar a Cerelac.
Seja lá como for, ou quando for, sempre será um sacramento, um rito de passagem, como um baptismo ou, mais ainda, uma tribal circuncisão (felizmente, indolor).
Uma experiência que irá, por certo, repetir-se viçosa pela vida fora, pois acredito existir incólume no seio do surf, como em poucas outras coisas, o sentimento da benção e da purificação, renovado sempre em cada corrida para o colo da onda.
Queremos, por isso, os nossos filhos a experimentarem o quanto antes essa vivência, a colherem dela uma sagrada satisfação, como os apóstolos da Santa Ceia.
Nesse dia bendito, não iremos cobri-los de brancas rendas, nem oferecer-lhes pulseiras de prata depois do rito de iniciação. Talvez vestir-lhes uns calçõezinhos com flores de ibiscus e pôr-lhes na mão uma bola de berlim, enquanto respiram singelamente a felicidade com os dedos dos pés enfiados na areia.
E se nos pedirem, com o seu sorriso maior que o sol, para lá voltarmos, comungaremos da sua livre vontade, que nos enternece religiosamente, como uma flor espontânea.

Amor precoce
A notícia não é de agora, mas Jaylan Amor (na foto), criança australiana que deverá ter hoje a idade do meu filho, já deslizava sobre as ondas pouco depois de aprender a andar. E, aos dois anos, ele e a irmã também surfista, Shayla Amor, já angariavam patrocínios! Caso para dizer: isso também é demais!...
Acreditava, naquela altura (2007), o The Daily Telegraph estar-se perante o miúdo mais novo a andar nas ondas da Golden Coast e, provavelmente, de toda a Austrália.
A praia parava para ver “trabalhar” o pequeno Jaylan. O pai afirmava que aquele talento lhe estava no sangue, pois ele próprio e a senhora Amor haviam passado pelo “kneeboard” enquanto jovens, e as crianças, desde cedo, corriam para a água como autênticos patos.
Com a ajuda do pai, que o conduzia sentado na prancha até uma zona de mar aberto, Jaylan erguia-se alentado sobre o deck, viajando, dizia-se, durante mais de cinquenta metros.
«Quando cai numa zona sem pé, ele esbraceja desenrascado até à prancha, aí esperando pelo resgate» – relatava o pai.
Sem pretender colocar pressão nos gostos de Jaylan, Peter Amor olhava o fenómeno com realismo: segundo ele, o seu "Amorzinho" também gostava duns toques na bola e - quem havia de sabê-lo? - poderia um dia trocar o mar pelos relvados.

Quando é Abril, pai?
Ao cruzar, há dias, na companhia do meu filho, a Praça de Espanha, ele viu um rapaz a atravessar a estrada com uma prancha de bodyboard. Pergunta, de chofre, com ar muitíssimo preocupado:
- Aquele senhor partiu a prancha, pai?
Habituara-se, desde sempre, a ver passear-me, dum lado para o outro, com um grande objecto, muito grande, muito grande, que lhe arregalava as pupilas, tal como a lua e os aviões.
Quando, por fim, começou a andar, vinha passar-lhe por cima as mãos pequenas, para poder aprender com elas aquilo que os olhos, até então, não lhe haviam dito. Aos poucos, rolaram, inevitáveis, as perguntas:
Para que servem as quilhas?
O leash é para quê?
Para que serve o wax?
Cinquenta vezes...
Ainda há bem pouco tempo, ele conseguia facilmente encher-me de garbo quando pegava numa revista de surf e dizia de pronto que aquele da capa (a sacar um tubo ou a rasgar um alto bottom) era o papá!
- Não, filho, esse é um amigo!
Ao fim duns tempos, o Kelly Slater, o Andy Irons e o Shane Dorian eram amigos do papá. Iam para a escola com o papá.
- O que fazes na escola com os teus amigos, papá?
Apetecia-me dizer-lhe que fazia surf o dia inteiro, mas tive receio que uns anos mais tarde ele não pudesse perdoar-me uma mentira tão cruel.
Como é de esperar, em face da onda que lhe passa em frente desde a nascença, já vem expressando a condizer a sua vontade:
- Também quero fazer surf!
- Tens, primeiro, de aprender a nadar.
- Mas eu já sei nadar!
(Sabe sempre tudo!...).
Lá começámos as sessões de piscina, em Setembro passado, sob a promessa de uma prancha e de um fatinho para o mês de Abril. Pergunta da moda nos últimos tempos:
- Quando é Abril, pai?
Lá vou tentando, com dificuldade, mensurar-lhe dois meses, que é o tempo que falta para apagar as quatro velas e desembrulhar o desejado presente.
Às vezes, penso: “Não será cedo?”
Depois, tropeço no Jaylan Amor.
O pequeno, coitado, nem teve escolha. O meu, pelo menos, já clama as ondas de livre arbítrio.
Será herança ou religiosidade?

3 comentários:

Sérgio "Isca" Ramalho disse...

Quando começares a ensinar-lhe vão ser dois putos a surfar, vais gostar.

Alberto Carvalho disse...

Amigo Lapas, não deixas de me surpreender com o teu dom de contador de historias, como infelizmente não tenho grande jeito para isso, fico-me pelos conselhos, neste caso de quem já passou por isso, aproveita para Surfar enquanto não se realiza o teu desejo de por o teu filho a surfar, porque depois vais ver que te vais arrepender de não o ter feito, porque ele rapidamente surfa melhor que tu, porque no carro, em casa e na carteira já não cabem pranchas e fatos para os dois, porque tens que ir para onde ele gosta e não onde tu gostas ou consegues surfar, etc, etc, etc.
Mas no final tudo isso vai valer a pena.
Deixo tambem um recado ao nosso ilustre anonimo, HOMEM QUE É HOMEM, TEM NOME.(de homem claro).

Musa disse...

Bem... com estas histórias deliciosas, quase me apetece perguntar:

- E Eu? Será que ainda tenho idade para adoptar um papá como este?? :S

A semelhança na paixão pelo mar, com o meu, já existe, só falta mesmo a filha heheheh... (por favor não me chamem de filha oferecida!)

Uma certeza todos nós temos, os vossos rebentos, têm o grande orgulho de vos pertencer... de ser vossos filhos!

Ahhhh, já agora:
- "Quando é" Março?? ;) hehehe

Um grande abraço amigos dos cantinhos da vida... :)